sexta-feira, 15 de janeiro de 2010



O que fazer com uma reforma de 140 euros?

PORQUE NÃO MUDAR
A VIDA DE UMA CRIANÇA?


[Texto e Fotos: Alexandre Correia]

Quem diria que este blog seria capaz de despertar memórias com quase quatro décadas? Mas é verdade e quem o prova é M.R., que no início dos anos 70 passou uma longa temporada desterrado num lugar onde se sentiu no fim do mundo. Eu ainda estava a aprender a ler quando M.R. de lá saíu. Saíu e não mais voltou a ir a essas terras onde as distâncias ainda hoje continuam a não ser medidas em quilómetros, mas sim em horas; horas de condução por picadas que as chuvas sempre deixam impraticáveis, de tal modo que nem vale muito a pena repará-las, porque nas próximas chuvadas vão ficar outra vez tão degradadas que ninguém acreditará que, entretanto, terão sido arranjadas. M.R. não voltou, nem a lá ir, nem a esquecer esses tempos vividos em África, num sítio onde apenas havia um cemitério. E ainda há o mesmo cemitério. M.R. voltou sim foi à “metrópole”, como nessa altura se chamava ao que hoje se chama “Portugal continental” — para diferenciar esta parte das regiões autónomas dos Açores e da Madeira, então províncias insulares. Mas pelo que percebi, há uma parte de M.R. que nunca mais partiu de lá, tamanha é a saudade, tão forte é a curiosidade em saber desse lugar...
Esse lugar chama-se Quimaria e não é mais do que uma aldeia perdida nos confins da província do Uíge, no norte de Angola. Quando M.R. lá chegou, esse era apenas o nome do aquartelamento onde se instalou a tropa portuguesa. Para além dos militares, não havia vivalma por perto. Foi em lugares como este, dominados por colonos que detinham grandes fazendas, onde se cultivava café e muita fruta — sobretudo citrinos —, que ocorreram os primeiros combates daquela que se tornaria conhecida para a história como “Guerra Colonial” portuguesa, no iníco dos anos 60. Calhou a M.R. ser mobilizado para esse desterro. Volvidos quase 40 anos, M.R. reencontrou Quimaria neste blog, onde deixou um primeiro comentário, colocando algumas questões, cuja resposta suscitou mais perguntas, mais contactos, até que acabou por contar que nunca recebeu qualquer pensão por ter sido militar nessa guerra, mas é provável que venha a receber. E se conseguir isso, M.R. não quer ficar com o dinheiro. É certo que não será muito, pois estima que sejam cerca de 140 euros por ano. Não é muito, mas pode ser uma fortuna para quem não tem nada. É assim que M.R. pensa. A sua ideia é devolver esse dinheiro ao lugar onde o terá ganho, há tantos anos: Quimaria. M.R. gostaria de entregar essa verba, todos os anos, a uma criança de Quimaria. E perguntou-me o que achava desta ideia, bem como se conseguia estabelecer os canais para encontrar o destinatário do seu subsídio, nessa aldeia angolana, tão remota.
Prometi que ia pensar e que tudo faria para ajudá-lo a concretizar esse desejo. Na realidade, talvez até conseguisse arranjar um portador suficientemente honesto para lhe confiar 140 euros e encarregá-lo de ir a Quimaria oferecê-los a uma criança. Mas, a partir daí, nada me garante que esses 140 euros não fossem logo convertidos numas grades de cerveja, que o pai dessa criança iria beber até cair para o lado e esquecer-se que tem filhos para criar. Com sorte, a mãe havia de gastá-los a comprar arroz, feijão, umas galinhas ou mesmo um porco para engordar e mais tarde tirar a barriga de misérias. Não que haja fome por aquelas bandas, mas ninguém cresce saudável a comer apenas funge temperado com molho de dém-dém... Mas o banquete não duraria muito tempo. Aqui, em Portugal, esses 140 euros nunca chegariam para sustentar um ano escolar a uma criança, mas lá, em Quimaria, onde já não existe nenhum quartel militar, mas onde foi construída uma escola primária, essa verba chegaria para comprar material escolar para muitas crianças, durante um ano inteiro. Sempre seria mais justo aplicar os 140 euros numa turma inteira, do que aplicá-los numa única criança. Mesmo que talvez fossem melhor investidos numa só criança, que tivesse potencial para “ir longe e ser alguém na vida”, como se diz. Talvez. Mas isso não seria justo para as outras crianças. A menos que os 140 euros se multiplicassem. Vou também pensar nisso...


Ao olhar para tantas crianças custa ter de escolher uma delas para investir um subsídio. Mais vale repartí-lo entre todas e aplicar o dinheiro em, por exemplo, material escolar, que com jeitinho chega para um ano inteiro.


Ao grupo da imagem acima podíamos chamar as "Mães de Quimaria"; ao contrário das de Bragança, que foram capa da revista norte-americana Time há alguns anos, quando se associaram para fechar um "antro de pecado" frequentado pelos seus maridos infiéis, estas são mesmo mães, até porque crianças é o que menos falta. Aliás, algumas mães quase que se confundem com as crianças, tão jovens que são...


Mandioca a secar em tabuleiros de canas. Nestas paragens, como em quase toda a África negra, a mandioca é um dos pilares fundamentais da alimentação. Para os lados de Quimaria não vimos sinais de fome, o que não quer dizer que a população ande bem alimentada. E são as crianças aquelas que mais sofrem da má nutrição.


Mata densa junto ao caminho de Quimaria para Toto. Serpenteando por entre colinas e vales, este troço do caminho continua como nos anos 70: cheios de buracos, alguns tão fundos que parecem suficientes para engolir um jipe.


Mais um dia que chega ao fim em Quimaria. Neste dia, como em tantos outros, o sol desapareceu sob um céu salpicado de nuvens, que ficou alaranjado até escurecer.