quinta-feira, 22 de outubro de 2009


A espera interminável pela chegada de...
A COMITIVA

[Texto e Fotos: Alexandre Correia]

Mergulhado numa densa nuvem de pó, que dava uma imagem difusa da paisagem e, pior do que isso, escondia os buracos do caminho, guiava há mais de uma hora pela picada quando reparei que desde que saíra do asfalto, na cidade de Gabela, ainda só tinha avançado cerca de 15 quilómetros. Ao ritmo a que a caravana seguia, seria impossível chegarmos a Quilenda à hora prevista. Desta vez, porém, ninguém tinha culpa do atraso. Ou todos tinhamos, simplesmente porque à hora do almoço a fome pesou mais do que horário programado. O almoço, numa churrasqueira à entrada de Gabela, embora tivesse sido encomendado com semanas de antecedência e sucessivamente confirmado nos dias anteriores, parecia ter sido improvisado no momento em que o restaurante foi invadido por mais de quatro dezenas de pessoas — os participantes no 4º Raid T.T. Kwanza Sul — que traziam fome a dobrar e encontraram comida para apenas metade. Ficou logo bem claro que ninguém saíria dali sem ter comido a refeição a que tinha direito, mas nem os relógios páram nem os frangos assam instantaneamente, pelo que a hora e meia desta paragem foi escandalosamente ultrapassada. Quando eu finalmente me pude servir, já uma boa parte dos meus companheiros estavam a postos para seguir viagem, mas a espera pelos mais atrasados — e talvez também a falta de um café — como que lhes provocou uma suave sonolência, tornada ainda mais agradável pelo calor do sol. Isso permitiu-me ter sido um dos últimos a chegar ao restaurante e o primeiro a partir, adiantando-me para tentar ganhar o tempo suficiente para conseguir parar na esplanada do centro da cidade, tomar um café expresso e voltar a partir devidamente colocado na cauda da caravana, sem que alguém desse pela minha falta e fizesse deter a marcha, como seria suposto que aconteceria até me encontrarem. O plano era perfeito, mas não contava com as obras de renovação dos espaços públicos da cidade, cujos trabalhos tinham precisamente acabado de chegar ao jardim da praça central, que foi isolado por tapumes e obrigou ao encerramento temporário da esplanada e do bar. Era irónico não conseguir tomar um café numa terra toda ela rodeada por abundantes cafezais, mas foi isso que aconteceu. E graças a este plano frustrado, acabei por ser um dos primeiros a avançar para a picada que liga Gabela a Quilenda, provavelmente um dos caminhos de terra com mais buracos por quilómetro entre todos os que já percorri em inúmeras destas aventuras. Só a Nissan Hardbody do líder da expedição seguia à frente da minha, pelo que não era por falta de habilidade ao volante nem de experiência em todo-o-terreno que não íamos mais depressa; era porque não dava mesmo para ir mais depressa. A visita a esta vila, perdida a meio caminho entre Gabela e Porto Amboim, não era uma visita qualquer e sabíamos que estava à nossa espera uma multidão, encabeçada por todas as autoridades e as chamadas “forças vivas” da terra. Até tinha vindo gente das aldeias vizinhas só para receber e aplaudir a comitiva, como diziam entre si. O encontro entre uns e outros estava previsto ter lugar na rua principal, onde fica a velha escola primária — numa das esquinas —, o jardim público com a sede do Clube local, mesmo ao lado, o edifício da sede do município, em frente, e a igreja, na ponta oposta, diante do jardim. Quilenda era o único município da provincia do Kwanza Sul que nunca tinha testemunhado a passagem da caravana desta expedição. E por um triz a visita não foi adiada, pois duas semanas antes de termos saído de Luanda a estrada estava intransitável, arrasada pelas chuvas. Reabriu ao trânsito apenas uns dias antes e somente no troço entre Gabela e Quilenda. E como a ideia era que a caravana daí seguisse até Porto Amboim, para depois descer a estrada costeira até Sumbe, onde nessa noite — com o tradicional banquete oferecido pelo Governador do Kwanza Sul — terminava a quarta edição do raide, ainda se pensou deixar isso para outra oportunidade. Porém, adiar a visita seria frustrar as expectativas daqueles que nos esperavam há quatro anos. E compreendi isso perfeitamente quando lá cheguei... Assim que as duas primeiras pickups entraram em Quilenda, passando defronte do posto da policia, à entrada de uma rua que se alarga e é divida ao centro por um canteiro com árvores — seguindo uma disposição típica do período colonial — imediatamente percebi a agitação. Um bando de rapazes desatou a correr rua acima, em direcção ao centro, anunciando a toda a gente que “a comitiva está a chegar”. Bastou segui-los para perceber onde é que tinha de ir: até ao cimo da rua, a uma rotunda delimitada por pedras que não escondiam ter sido caiadas de branco há muito pouco tempo — como aliás as pedras que contornavam todos os canteiros no meio das ruas. Parecia que estava ali a população toda, dividida em três grupos bem distintos. Os membros da administração do munícipio e as individualidades importantes da vila, desde o padre aos professores, passando pelo chefe da policia, aguardavam-nos no cimo das escadas de acesso às instalações da autarquia; em baixo, junto ao muro, estavam os representantes do poder tradicional, os sobas, à vontade uma trintena deles, todos vestidos com uma farda de cor de areia e alinhados como se estivessem numa formatura militar. E até parecia que estavam. Em frente destes dois grupos, bem no meio da rua, estava o povo todo. Muita gente mesmo. Mais mulheres do que homens, imensas com bebés presos às costas, amarrados com capulanas coloridas, e bastantes crianças, que transbordavam de curiosidade e de excitação. E até denunciavam algum medo. Grande parte desta gente não tinha memória de alguma vez uma comitiva assim ter visitado Quilenda. E o orgulho das autoridades não podia ser maior, pois consideravam a nossa visita como uma “comitiva oficial”, ou não se tratasse de um raide promovido sob a égide de duas entidades oficiais — o Governo da Província do Kwanza Sul e a Câmara Municipal de Almada. Foi nessa altura que senti como era realmente importante para aquele gente receber-nos na sua terra perdida. O que para nós era um frete, uma deslocação que ninguém tinha começado com ânimo, mas sim pela obrigação de cumprir com o programa — pois o cansaço de longos dias a percorrer picadas esburacadas e poeirentas já era forte —, era encarado de modo completamente diferente por quem nos aguardava; era motivo de enorme orgulho, para além de uma grande excitação. Quando chegámos, vi expressões de contentamento nos olhares daquela gente toda. E logo esqueci o sacrifício que tinha sido percorrer aquela picada. Um sacrifício que, diga-se de passagem, ainda iria repetir quando terminassemos a visita. Mas aqueles sorrisos, o sentir que era assim tão importante termos ido lá, superou isso tudo. O frete deu lugar ao prazer de termos conseguido corresponder às expectativas. E uma das coisas boas da vida é conseguirmos isso: corresponder às expectativas. Antes de mais, às nossas. Mas também às de quem, como naquele dia sucedeu com o povo e as autoridades de Quilenda, se mobiliza por nós. Quantas vezes não nos acontece passarmos por isso com uma absoluta indiferença? Provavelmente, todos nós já provocámos decepções dessas. Neste caso, felizmente que fomos ao encontro dessas expectativas, pois a avaliar pela festa que estava preparada em nossa honra, se não aparecessemos teríamos ferido o orgulho daquela gente. Assim que estacionei, depois de descrever a rotunda, começaram logo a ouvir-se os batuques, sinal para o povo arrancar a festa. Esperavam dúzia e meia de pickups, com mais de quarenta pessoas, e apareceram só duas, com dois pares de ocupantes. Como não vinham mais carros atrás, a festa interrompeu-se. A nossa chegada era um falso alarme. A comitiva ainda vinha a caminho. Vinha sim e demorou uma boa meia hora, em que até nós os quatro ficámos impacientes — interrogando-nos se tinha acontecido alguma coisa ao grosso da coluna — quanto mais aquele povo todo, que já ali estava há umas horas... O pó, aquele maldito pó, era o culpado de tamanho atraso. O pó e os buracos infernais. As pickups chegaram em grupos de duas ou três, com alguns minutos de intervalo entre si, que eram o tempo necessário para deixar assentar a poeira. A tarde estava mesmo no final quando a festa recomeçou, repetindo um ritual que já era familiar aos veteranos desta expedição: intermináveis apresentações de cumprimentos, alguns discursos de boas vindas e de agradecimento pela vinda de uma comitiva, uma festa popular com música e danças, e outra festa, mais resguardada de olhares públicos, só para os membros da comitiva e para os anfitriões. Esta última, como normalmente, metia comes e bebes. Afinal, as boas celebrações têm lugar à mesa. Em 2005, no decurso do primeiro destes raides por Angola, quando chegámos à vila de Seles descobrimos que tinham organizado não um, mas sim dois jantares em nossa honra. E como não podíamos fazer a desfeita aos que nos convidavam, tivémos de ter estômago para comparecer aos dois repastos. Foi uma barrigada de galinha de cabidela e caldeirada de cabrito — logo por azar as ementas foram quase idênticas... — mas ninguém ficou ofendido, nem deu pela duplicidade de jantares. E para nós, foi como se tivessemos feito um intervalo entre o primeiro e o segundo pratos. Agora, porém, era diferente. Tinham preparado um lanche na residência da administradora de Quilenda e apesar do nosso atraso nos recomendar que partissemos quanto antes, repetindo o percurso até Gabela, não houve coragem para recusar o convite, tal era a satisfação por finalmente termos ido a esta vila. E como as palavras são como as cerejas — atrás de uma vem sempre outra... — o que tinhamos discretamente combinado que seria uma visita de médico, só o tempo necessário para corresponder ao formalismo da visita, acabou por tornar-se num encontro descontraído e demorado. Só nos apercebemos que as horas continuavam a passar quando começou a escurecer. Ao desperdirmo-nos, explicando a urgência de regressarmos à cidade de Sumbe, para o banquete com o Governador, o chefe da policia de Quilenda quis ser prestativo e imediatamente requisitou uma escolta para nos acompanhar até Gabela. Esqueceu-se foi de dar indicações ao motorista do jipe da policia para ir tão depressa quanto pudesse. E como não o fez, o condutor decidiu converter a sua missão num vagoroso desfile através da picada, rolando devagar, parando para passar cuidadosamente nos buracos mais fundos, abrandando ainda mais à passagem pelas localidades. Mais deseperante não podia ter sido. Ninguém tinha coragem de ultrapassar o carro da policia, que só desmobilizou nos limites do concelho. O resultado foi termos adiado o jantar para a hora da ceia, sentando-nos à mesa já muito perto da meia-noite. O raide, todavia, estava terminado e na manhã seguinte não precisávamos sequer de madrugar, pois só restava cumprir a ligação de regresso a Luanda. Portanto, ninguém se preocupou que o jantar durasse até às três da madrugada e houve mesmo quem tivesse resistido ao sono e continuasse pela noite dentro a dançar, acabando a festa ao amanhecer com um mergulho nas águas do Atlântico, mesmo em frente ao hotel.

Mergulhadas numa nuvem de poeira, as Nissan Hardbody do 4º Raid T.T.Kwanza Sul entraram em Quilenda bem mais tarde do que o previsto. O caminho desde Gabela até esta vila estava num estado tal que a média de andamento rondou os 15 km/h.

Quem chega de visita deve cumprimentar os visitados. E a regra do protocolo diz que os anfitriões devem receber os seus convidados à porta. Nenhuma destas regras foi desvirtuada na nossa visita a Quilenda.

E a tradição também diz que uma comitiva deve ser recebida com um discurso. Em Quilenda, a festa só parou para ouvir as "palavras de circunstância" ditas pelas autoridades locais em honra dos visitantes, assim como pela réplica por parte de uma das "autoridades" da caravana, que agradeceu publicamente a atenção que nos foi dispensada.

Assim que terminaram os discursos, fizeram-se ouvir de novo os batuques e o povo voltou a formar uma roda gigante, dançando alegremente diante da sede do município.

Até os bebés participaram na festa. Amarrados às costas das mães, fartaram-se de dançar!

A festa popular, na rua principal de Quilenda, terminou ao cair do dia. Mas a comitiva tinha ainda uma pequena celebração privada, na residência da administradora local...

segunda-feira, 5 de outubro de 2009


Ajuda que vale a pena
UMA ESCOLA PARA CONSTRUIR O FUTURO

[Texto e Fotos: Alexandre Correia]

Em quase três décadas de viagens, tropecei inúmeras vezes em programas organizados que tinham, pelo meio, ou em si mesmo, acções anunciadas como sendo de “ajuda humanitária”. A expressão é relativamente recente, embora o princípio seja idêntico ao que antigamente se fazia sem atribuir nenhum nome especial, ou até mesmo sem disso se fazer grande alarde.
Nunca gostei particularmente de me ver envolvido neste tipo de acções, pelo que sempre me senti um tanto incomodado cada vez que tomava parte num programa que incluía “ajuda humanitária”. E o mais engraçado, embora não tenha realmente graça nenhuma, é que ao abster-me de participar nestas acções, acabei sempre por ser olhado de lado, com desconfiança. Era sempre o único que não vibrava de entusiasmo por entrar numa escola de miúdos meio esfarrapados para oferecer caixinhas de lápis de cor e caderninhos todos bonitos, ou por parar no centro de uma aldeia, algures numa das muitas regiões pobres do mundo, para distribuir não interessa o quê, até porque muito raramente me apercebi de que alguém tivesse feito um levantamento prévio das necessidades das comunidades sobre as quais incidia a “ajuda humanitária”. Normalmente, a sensação que tenho é que se compraram uns tantos artigos baratos, que não fazem falta a ninguém, carregaram-se quilos e mais quilos de brindes publicitários que também já ninguém queria e não servem para nada, por vezes junta-se uma colecção de roupas e sapatos velhos, que deviam ter ido para o lixo, mas que todos guardaram à espera da oportunidade para poder oferecer “a quem precisa”, como costumo ouvir dizer, com aquele ar piedoso de quem julga que está a praticar o bem. Cresci a ouvir dizer que a caridade é anónima e quanto mais assisto a estas manifestações, mais concordo que sim, que quem realmente quer ajudar alguém, simplesmente ajuda. Não o anuncia, nem o publicita.
Nunca me esqueci de ouvir um tipo a contar, depois de ter regressado de uma “missão humanitária”, que tinha andado a ensinar os pretos a comer de garfo e faca. Contava isto em rodas de amigos e toda a gente se ria imenso. Nunca achei piada. Se ele tivesse ido à tropa, cumprir o Serviço Militar, que ainda era obrigatório quando fiz 21 anos, em 1985, podia ter feito o mesmo a imenso tipos, todos da minha idade e tão brancos como eu... Outro tipo que conhecia guardava uma noite por semana para trabalhar como voluntário numa ONG e andava um par de horas a distribuir sanduiches e pacotes de leite aos miseráveis que dormem na rua, em Lisboa, só porque ficava muito bem no seu currículo e, melhor do que isso, as mulheres ficavam sempre muito bem impressionadas com ele. Generoso, hem!... Tive uma amiga — que um dia deixou de merecer sê-lo — que era tão dada a depressões que passava a vida a dizer que queria tirar um ano para ir trabalhar como voluntária num projecto qualquer em África, a ajudar os coitadinhos e a aliviar a consciência, em busca de paz. Pelo que conhecia dela — e sobretudo pelo que mais tarde descobri... — ainda bem que os coitadinhos dos pobrezinhos nunca contaram com a sua disponibilidade, pois quem precisava de ajuda era mesmo ela e eles não iam ter paz. E são tantos os exemplos, maus exemplos, que me ocorrem, que se os fosse contar todos era uma história interminável. Mas se a regra é invocar-se de forma pouco escrupulosa e pouco séria a expressão “ajuda humanitária”, reconheço que não há regra sem excepção. Em tantos anos, só me ocorrem duas excepções, que eu testemunhei. Uma passou-se recentemente, em Angola, outra aconteceu há bastante tempo, também em África, mas bem perto da Europa...
Foi numa expedição a Marrocos, em meados dos anos 90, que vivi um desses momentos que considerei uma excepção: fomos oferecer um motor para puxar água a uma aldeia remota nas franjas do Sahara, encostada à fronteira com a Argélia, numa zona tão isolada que nem sequer as costumeiras caravanas de jipes carregadas de turistas sequiosos de aventura costumavam lá passar. Passavam sim, mas ao longe e quando os miúdos corriam atrás dos jipes, descalços sobre as pedras, agitando as mãos num gesto que tanto era um sinal de cumprimento, a dizer adeus, como de ajuda, a pedir uma esmola, os jipes aceleravam ainda mais e desapareciam sob uma densa nuvem de poeira. Por muito que corressem, os miúdos nunca conseguiam chegar à pista a tempo de ainda alcançarem um jipe. Nesse dia, porém, o que aconteceu foi diferente. Quando os miúdos se aperceberam da caravana já todos os jipes vinham ao seu encontro. Estacionámos no centro da aldeia e imediatamente fomos rodeados por dezenas de crianças, alegres e ruidosas. Em poucos minutos, toda a gente da aldeia estava junto de nós. Até algumas cabras e burros passeavam-se entre a multidão, como se estivessem igualmente curiosos de saber o que ia passar-se. Connosco vinha um camião e foi de lá que retirámos o motor de puxar água, que em minutos foi instalado num poço que ali havia, no meio da aldeia, à sombra de duas enormes palmeiras. Depois de termos posto gasolina no pequeno depósito do motor, puxámos um cabo meia-dúzia de vezes e de repente fez-se um silêncio profundo: assim que se ouviram os primeiros roncos do motor a funcionar, toda a gente se calou. E depois desataram numa algazarra. Aquele era, sem dúvida, um momento de grande alegria! Três homens, que se comportavam como se fossem os líderes locais, aprenderam num instante tudo o que era fundamental saberem para que o motor durasse longo tempo, nomeadamente a manutenção e modo de funcionamento da máquina. Quando a mangueira mergulhou no poço, tão fundo que do alto não conseguíamos distinguir a água, já se tinha criado um fila de mulheres e crianças carregadas com vasilhas de plástico, que aguardavam pacientemente que a água começasse a jorrar da ponta da mangueira. Esse foi outro momento inesquecível. A expressão alegre de toda a gente, os olhares felizes. Sem discursos, sem lápides para descerrar, sem mais nada, despedi-mo-nos e partimos de novo pela pista pedregosa e poeirenta. E desta vez os miúdos não vieram atrás, numa correria desenfreada. Ficaram ali, à volta do poço, fascinados com aquela máquina vermelha, barulhenta, que chupava a água do poço. Pelo menos enquanto o motor funcionasse, não teriam de queimar as energias agarrados à alavanca da velha bomba manual, num repetitivo vai-vem de minutos para fazer cuspir pequenas golfadas de água do poço.
Nesse dia, em Marrocos, algures entre Erfoud e Zagora, junto à fronteira com a Argélia, mudei a minha opinião e achei que tinha valido a pena aquele pequeno esforço para oferecermos um motor de puxar água, que contribuiu para uma efectiva melhoria das condições de vida daquela comunidade. E porque nos limitámos a oferecer o motor. Discretamente.
A outra excepção foi em Junho de 2009, no sul de Angola. Integrava a caravana de uma expedição todo-o-terreno, o Raid T.T. Kwanza Sul e na manhã do último dia do programa os promotores do evento levaram-nos a ver as obras de construção de uma escola primária, uma das três escolas projectadas e custeadas pelo município português de Almada, ao abrigo de um acordo de geminação que começou pela associação à pequena cidade costeira de Porto Amboim e que acabou por alargar-se a toda a província do Kwanza Sul.
Implantada nos arredores da vila de Conda, não muito longe da cidade de Gabela, a escola que visitámos era ainda o esqueleto de um edifício térreo, com três amplas salas para aulas e um anexo com as restantes infra-estruturas. O local da construção é no meio do nada, entre uma aldeia e a vila de Conda, à beira de um cabeço, de onde se aprecia uma paisagem extraordinária. Lembrou-me uma escola primária que encontrei há alguns anos num local igualmente isolado e lindíssimo, na Amazónia venezuelana; tinha na fachada, pintada em grandes letras, uma frase atribuída a Simon Bolívar, que nunca mais me saiu da cabeça: “Un hombre sin estudios és un ser incompleto”. E ao visitar as obras da nova escola de Conda, dei comigo a pensar que se há coisas em que vale sempre a pena investir é na construção de escolas. Nisso e na vacinação de crianças, que um médico, velho amigo, que já desapareceu, me dizia ter a certeza de que era a única coisa verdadeiramente útil que tinha feito em longos anos de trabalho em missões humanitárias, que o levaram diversas vezes ao epicentro de alguns dos maiores conflitos recentes, como o Afeganistão, ainda no tempo da guerra com os russos, mas também já sob o domínio dos talibãs, o Ruanda durante a crise dos Grandes Lagos, a Libéria e a Serra Leoa durante os piores momentos das guerras civis que assolaram estes países, entre tantos outros cenários, sempre dos mais duros para trabalhar.
Ali, entre os muros de tijolo nu da nova escola, lembrei-me também das Filipinas, onde encontrei escolas nos locais mais recônditos, em plena selva. Em 1898, quando a Coroa espanhola vendeu aos Estados Unidos da América o arquipélago das Filipinas — alienando esta colónia do Pacífico pela soma de um milhão de USD — os americanos tomaram posse de 7107 ilhas, um terço das quais habitadas, onde ninguém se entendia. Simplesmente porque cada comunidade tinha a sua própria língua. E quase ninguém falava espanhol, porque durante o tempo de domínio espanhol as poucas escolas estavam reservadas aos próprios espanhóis e a uma reduzida elite filipina. Em 1946, quando os EUA concederam a independência às Filipinas, a realidade era completamente diferente: já havia uma língua que unia todos os filipinos. Era o inglês. E como é que os norte-americanos conseguiram em 48 anos aquilo que os espanhóis não conseguiram em mais de três séculos? Abriram escolas. Milhares de escolas. Uma em cada aldeia. E levaram professores. E decretaram que as crianças eram obrigadas a frequentar a escola primária.
Numa altura em que se debate a importância do português enquanto língua, bem como a memória de Portugal nos países que outrora integravam o imenso Império Colonial Português, são exemplos como este, da pequena escola perdida no cimo de um cabeço junto à vila de Conda, nas profundezas de Angola, que nos mostram a solução. A solução mais válida de todas para que o português mantenha a sua importância no quadro das grandes línguas faladas no mundo. E volto a lembrar-me da frase de Simon Bolívar, escrita na fechada da escola que encontrei na floresta amazónica: um homem sem estudos é um ser incompleto. Sem dúvida. E nenhum país se constrói nem se desenvolve com analfabetos. O futuro, de Angola, de Portugal, de qualquer país, constrói-se nas escolas.
Momentos depois da breve inspecção às obras, dirigi-mo-nos ao centro da vila de Conda, onde todos os membros desta caravana foram recebidos como os beneméritos da nova escola, a quem as autoridades e a população locais dispensou uma pequena homenagem, que decretou feriado na terra durante aí uma meia hora. O tempo necessário para uma sessão de cumprimentos aos sobas e administradores municipais, seguidas por algumas palavras de circunstância, que não se alongaram. O sistema de som que permitiu amplificar a voz dos que discursaram, foi o mesmo que logo a seguir aos aplausos populares afrouxarem começou a emitir música. E em segundos dançava-se na rua principal de Conda. Naquele dia, havia motivo para festejar a meio da manhã...


Depois de visitadas as obras da nova escola, fizémos uma entrada triunfal em Conda, onde as forças vivas da terra e inúmeros representantes da sociedade civil — num discurso formal é assim que designamos a assistência popular — aguardavam pacientemente a chegada da comitiva, para um breve acto simbólico. Foi bonito ver que aqueles que receberam ajuda ficaram gratos por isso.

Para não tapar ninguém, fui o último a participar na sessão de cumprimentos, trocando dezenas de apertos de mão com os Sobas do município de Conda, mas também com o Padre e seus ajudantes, com os dirigentes da Administração local e os representantes das Autoridades. No final, apanhei o microfone a jeito não resisti a um breve improviso. Nunca se deve deixar um microfone à mão...

Uma vénia de respeito diante das senhoras, que os sobas são sempre homens de grande educação.

Terminados os breves discursos, ainda se ouviam os aplausos populares e já tocava música no sistema de som, transformando a rua principal de Conda num palco de dança, como se tivesse sido decretado feriado na vila por uma boa meia-hora!

...até na repartição o trabalho parou uns momentos, para os funcionários espreitarem a festa, encostados à janela.