segunda-feira, 31 de agosto de 2009


“Venham que o Pai vai fazer uma foto!”...
RETRATO DE UMA FAMÍLIA NUMEROSA

[Texto e Fotos: Alexandre Correia]

Quando parei a pickup na berma da estrada, não havia ninguém à vista. Diante da casa, com duas portas reforçadas por um gradeamento de ferro, mas apenas uma janela sem qualquer protecção especial, havia apenas uma bicicleta, que repousava assente no descanso sob a roda traseira. Desliguei o motor e abri a janela para fazer uma fotografia à caravana que passava. Eram mais de uma dúzia de pickups, todas iguais, excepto na decoração que ostentavam. Uma a uma, iam mergulhando nas enormes poças que faziam a picada parecer um rio e cada vez que aceleravam, como que para fugir de um provável atoleiro, levantavam uma cortina de água lamacenta. E então, tornavam-se mesmo todas iguais, como se aquela água acastanhada as tivesse pintado.
O ruído a caravana atraíu alguém, que espreitou pela porta aberta e logo desapareceu na escuridão do interior. Instantes depois, voltou. Era um miúdo para aí com uns dez anos. Atrás dele veio outro e se não fosse a ligeira diferença de altura, diria que eram gémeos. Apareceu um terceiro, um pouco mais velho, e logo a seguir veio um adulto. Era o pai deles. Enquanto fotografava as pickups, ficaram ali a olhar-me, seguindo atentamente o que eu fazia, mas sem nada dizer. Quando as viaturas começaram a desaparecer ao longe, desapareceu também esse silêncio. Cumprimentei-os e responderam logo em coro: “Bom dia sim!” Perguntei se eram todos familiares. Disseram que sim. Então, ofereci-me para fazer um retrato à família. Nem precisei de ouvir a resposta para perceber que sim. Bastou ver os sorrisos que se rasgaram.
Agora já não precisava de permanecer resguardado no interior da minha pickup, porque já não corria o risco de ficar todo salpicado de lama. Os outros veículos já tinham desaparecido. Saí e apontei a máquina fotográfica aos quatro. Enquanto lhes fazia um primeiro retrato, o adulto gritou para dentro de casa: “Venham que o Pai vai fazer uma fotografia!”
Ele era o Pai deles, mas o meu cabelo levemente grisalho e a barba prateada fê-lo tratar-me carinhosamente por Pai. Por respeito e por aparentar ser o mais velho. Enquanto não chegava mais ninguém, avisou-me logo que a família dele era grande. Disse-lhe que não devia ser maior que a minha. Garantiu-me que sim, que era, “de certeza”. Deixei-o insistir que tinha uma grande família, convicto de que arrumaria a questão a meu favor quando o esclarecesse quanto à dimensão da minha família. Começam então a chegar algumas crianças. Uma vem com um bébé ao colo e se os alinhasse por alturas, a sua sombra desenhava uma escada. A diferença entre alguns não devia ser mais de um ano, pensei eu. Pela minha avaliação, achei que já tinha ganho e foi a minha vez de abrir o sorriso, antes de dizer-lhe: “Sabe, só irmãos nós somos doze... Metade rapazes, metade raparigas” — acrescentei, com a sensação de os ter impressionado. E ganho, claro.
Mas não ganhei. Continuavam a chegar crianças, que se iam dispondo alinhadas lado a lado, por trás da bicicleta. Quando me parece que estão todos, conto-os e declaro um empate. Empate, aliás, duplo, pois vejo tantos meninos como meninas. O homem sorriu ainda mais. Estava visivelmente divertido. Só nessa altura me respondeu: “Nós também somos catorze, se contar só com os filhos...” — e fez um sinal para trás de si. Então, timidamente, aparece a espreitar por trás dos outros, numa ponta do grupo, mais uma miúda. Tem, talvez, uns cinco anos, carregando também ela um bébé às costas, amarrado a uma capulana, como se andassem a brincar aos pais e às mães. Eram os dois que faltavam. Quando parti, tive a sensação de que estavam mais do que divertidos por terem ganho este braço de ferro. Senti que, acima de tudo, estavam orgulhosos por serem uma família tão grande.


Quando parei, ao lado da casa, para fotografar a caravana a passar naquela troço incrivelmente lamacento da picada, não havia ninguém por perto. Apenas uma bicicleta e uma porta aberta. Não tardou a estar diante de uma enorme família. Bem divertida. Ali, respirava-se felicidade!

Não paravam de aparecer crianças, que se iam alinhando ao lado dos pais, por trás de bicicleta. Nesta altura, contei-os todos e declarei um empate. Também somos 12 irmãos — disse-lhes triunfante...

Tinham-me pregado uma partida e estava na hora de divertirem-se com isso. O Pai fez um sinal e por trás do grupo apareceu uma menina com um bébé amarrado às costas. Agora não havia dúvidas e aceitei essa "derrota" com fair-play.

Dezasseis sorrisos. Todos da mesma família. E ainda pensava eu que tinha uma grande família...

sexta-feira, 28 de agosto de 2009


O Presídio de Massangano
A CAPITAL QUE A HISTÓRIA ESQUECEU

[Texto e Fotos: Alexandre Correia]

Há um tesouro histórico perdido a cerca de duas horas de condução desde Luanda, seguindo pela estrada para Catete e Dondo. Quem não o conhecer, dificilmente o descobrirá, pois para lá chegar terá de desviar da estrada principal uns 15 quilómetros antes de entrar na vila de Dondo, tomando uma estrada secundária que arranca pelo lado direito, mas que não só não tem nenhuma placa a identificá-la, como nem sequer é suficientemente perceptível por quem circula na via principal. Desenrolando-se ora pelo cimo de pequenos cabeços, ora nos vales, num constante sobe e desce, esta estrada é por si só um belo passeio, em que o descrever de cada curva desvenda novas perspectivas de uma paisagem que não cansa o olhar e onde os embondeiros são uma presença constante, a perder de vista. Quase sempre apenas com a largura de um veículo e em piso de terra, embora por vezes surjam ainda velhos troços de asfalto que conseguiram resistir ao desgaste do tempo e ao esquecimento, esta estrada, que não tem saída, é como que guardiã de um segredo bem guardado, que apenas é transmitido a alguns afortunados. Esse sítio tão precioso — especialmente para os amantes da história — chama-se Massangano e os participantes no 4º Raid T.T. Kwanza Sul, onde me incluí, foram alguns dos sortudos que puderam visitá-lo, chegando lá guiados por outros que o são muito mais, nem que seja pelo facto de terem conhecido este local histórico noutra altura, nalguns casos há muitas décadas, quando aquela vintena de quilómetros ainda era uma estrada de asfalto... Massangano situa-se numa pequena elevação de terreno que se evidencia na ampla planície onde correm os rios Cuanza e Lucala, entre a margem direita do primeiro e esquerda do segundo, ligeiramente a montante do ponto em que se juntam. Embora não seja senão um cerro, é o ponto mais alto da região, tornando-se num local estratégico para controlar toda a movimentação nas terras em redor e a navegação nos dois rios. Este aspecto não passou despercebido a Paulo Dias de Novais, quando em 1579 começou a subir o rio Cuanza, na liderança da primeira grande expedição pelo interior do Reino de Angola que visou estender a colonização portuguesa destas terras para além da faixa costeira. Assim, foi mesmo aí que o primeiro Capitão-Mor e Governador de Angola fundou o primeiro de uma série de presídios — postos da administração colonial, que deram origem a povoações e fortalezas — junto aos grandes rios. Em Maio de 1585, apenas dois anos após ter mandado construir o presídio de Massangano, foi aí que Paulo Dias de Novais morreu, tendo sido sepultado diante da igreja que tinha dedicado a Nossa Senhora da Vitória. A morte do Governador não foi, porém, a morte de Massangano, que continuou a desenvolver o seu papel determinante para implantar a soberania portuguesa no coração da terra dos Ngola, tornando-se numa importante povoação. Por isso mesmo, quando os holandeses assaltaram Luanda e tomaram conta da cidade, foi para Massangano que Salvador Correia — que era então o Governador de Angola — fugiu, refugiando-se neste lugar com toda a administração portuguesa. Durante sete anos, num período que foi de Agosto de 1641 a Agosto de 1648, Massangano foi oficialmente a capital portuguesa de Angola, tendo-se desenvolvido ainda mais. Porém, com a reconquista de Luanda e a definitiva expulsão dos holandeses, a 18 de Agosto de 1648, a capital voltou para onde ainda hoje está, enquanto que a pequena cidade criada nesse cerro entre o Cuanza e o Lucala voltou à sua modesta condição de um ponto de implantação colonial, com uma forte componente militar. Com o passar dos séculos, a importância estratégica de Massangano sob o ponto de vista militar nunca se perdeu, mas a chegada da paz a Angola até isso fez tornar-se irrelevante. Actualmente, este local, sem dúvida que um dos mais importantes da história de Angola e da sua colonização, não passa de uma discreta aldeia ribeirinha, com escassa população, uma esquadra policial quase sem guarnição, um posto de saúde que só abre quando há consultas médicas e a casa da administração local. Tudo o resto, salvo a igreja, situada numa das extremas da povoação, são ruínas. Ruínas imponentes, como a da Casa da Câmara, ou do Tribunal — que tinha a cadeia em anexo, como que para tudo ficar resolvido no mesmo sítio... —, cujas grossas e altas paredes de pedra souberam resistir ao passar dos séculos. A fortaleza, encostada a uma pequena falésia que desce para o Cuanza, entre a velha Casa da Câmara e a Igreja de Nossa Senhora da Vitória, já foi desocupada e esvaziada, restando apenas as grossas paredes, que também acusam a falta de manutenção. Até a igreja precisa urgentemente de um novo tecto, que ameaça desabar e deixa já o céu a descoberto nalguns pontos. No entanto, não é por isso que o povo deixa de a encher regularmente, sempre que o padre celebra missa. Dos primórdios de Massagano, esta foi a única herança que jamais se perdeu, ou um dos objectivos dos pioneiros não tivesse sido a cristianização dos povos angolanos...



Passado e presente frente a frente. Em primeiro plano, as ruínas da antiga Casa da Câmara; por trás, o edifício cor de rosa é onde actualmente está instalada a administração local. A esquadra da policia fica ao lado.


O túmulo de Paulo Dias de Novais, diante da igreja que o primeiro Capitão-Mor e Governador de Angola mandou construir, numa extrema da povoação.

O telhado ameaça desabar, mas a velha Igreja de Nossa Senhora da Vitória continua aberta ao culto e enche-se de gente nos dias em que o padre vem dizer a missa. Esta é a única rotina que nunca mudou desde que nasceu Massangano.

Com excepção de alguns turistas, que surgem ocasionalmente, ninguém vai a Massangano, senão os que lá vivem. E são poucos. Dentro da povoação, até o caminho foi conquistado pelo mato; só a marca dos rodados dos jipes é mais forte.


À porta da fortaleza, a placa que assinala a homenagem aos heróis de Massangano, realizada precisamente 300 anos depois de Luanda ter voltado à soberania portuguesa. Foi em 1648 e desde então este lugar encantador à beira do rio Cuanza não voltou a ter a mesma importância...

domingo, 23 de agosto de 2009


Nas Serras de Cambambe
O ELDORADO PORTUGUÊS EM ANGOLA

[Texto e Fotos: Alexandre Correia]

Há cinco séculos, no período das descobertas e conquistas, os espanhóis vasculharam a América do Sul e Central em busca do mítico Eldorado. Os portugueses, não lhes ficaram atrás e também perseguiram um mito semelhante, que se tornou lendário durante longos anos, só se perdendo essa crença nos finais do século XVIII, quando se tornou impossível sustentá-la mais. O Eldorado português era, supostamente, em Angola, a cerca de duas centenas de quilómetros de Luanda, nuns montes sobranceiros ao Cuanza, na zona onde o rio começa a libertar-se de gargantas apertadas que o fazem correr rápido, para espreguiçar-se em vales amplos, que lhe permitem alargar as margens. Este sítio, um pouco a montante da vila de Dondo, chama-se Cambambe. Como conta Miguel Anacoreta Correia, num dos textos do livro “Do Kunene a Cabinda — História e Estórias de Angola”, citando a obra de Ilídio do Amaral “O Consulado de Paulo Dias de Novais. Angola no último quartel do séc. XVI e primeiro do Séc. XVII”, esta lenda começou com um presente enviado pelo Rei do Congo a D.Manuel I: umas manilhas de prata. A oferta intrigou o monarca português, que obteve a informação de que provinham de Cambambe. As perspectivas de somar ao ouro do Brasil a prata de Angola foram, por certo, altamente motivadoras para intensificar a exploração destas terras na África Austral para além da área junto à costa atlântica. Disso mesmo — bem como de evangelizar o Rei de Angola, como já havia sido feito com o do Congo — foram incumbidos Manuel Pacheco e Baltazar de Castro, conforme reza um documento régio datado de 16 de Fevereiro de 1520. Nenhum destes exploradores teve sorte na sua missão e Baltazar de Castro acabou mesmo por ser capturado pelos Ngola, que o mantiveram seis anos em cativeiro, até ao soltarem em 1526. Durante o longo período que permaneceu aprisionado, Castro nunca deixou de procurar obter informações sobre essa imensa riqueza, que eram as minas de prata de Cambambe. Numa carta enviada do Congo ao Rei D.João III, após ter sido libertado, Castro dá conta da decepção dos seus esforços. Os reis foram-se sucedendo uns aos outros, transmitindo em herança esse segredo, que continuava por desvendar. Nomeado por D.Sebastião primeiro Capitão e Governador do Reino de Angola, a 19 de Setembro de 1571, Paulo Dias de Novais recebeu do rei a mesma missão secreta que já suscitara viagens exploratórias anteriores, assim como a promessa de muitas honrarias e benesses caso encontrasse as tão ambicionadas minas de prata. Foi, certamente, este o principal impulsionador da exploração do curso do rio Cuanza, iniciando por Paulo Dias de Novais a partir de 1579, quando começou a implantar os primeiros presídios — como se chamava então aos postos militares que assinalavam o avanço da conquista do território e a respectiva colonização. Apesar das minas estarem destinadas ao monopólio real, isso não impediu Novais de doar aos Jesuítas uma das minas de prata que fossem encontradas, como pagamento da colaboração dos padres nesta missão de exploração rumo ao interior de Angola subindo pelo rio Cuanza, segundo carta assinada pelo governador a 26 de Agosto de 1581. Paulo Dias de Novais morreu, em Maio de 1585, sem nunca ter chegado a Cambambe e sem ter encontrado as minas. Essa conquista acabou por ser protagonizada por um dos seus sucessores, Manuel Cerveira Pereira, em 1603, e o mais curioso é que então a busca destas minas foi suspensa por ordem de Filipe II de Espanha — Portugal tinha perdido a soberania, que só seria recuperada a 1 de Dezembro de 1640 —, deveras preocupado com os encargos dessa missão que não havia maneira de ser bem sucedida. Assim, o Governador Cerveira Pereira limitou-se a implantar um presídio em Cambambe, instalado no cimo de um cerro, à beira de um precipício que dominava um troço do rio Cuanza e todas as terras em redor, bem próximo de uma garganta que estrangulava o rio e onde as águas se despenhavam numa queda, acelerando pelo vale abaixo. Terminava aí o sector navegável do Cuanza, para os barcos vindos desde o Atlântico e aí parou por muitos anos a exploração do interior do Reino de Angola. Mas, as minas não caíram no esquecimento e os Jesuítas encarregaram-se de, ocasionalmente, como o provam alguns documentos, de espalhar boatos sobre a imensa riqueza dos montes de Cambambe, de que se chegou mesmo a dizer que a prata era tanta que quando o sol incidida nestes montes o brilho era tão ofuscante que podia cegar. Talvez por isso, nunca ninguém abriu os olhos pois, realmente, as minas jamais foram encontradas. A grande riqueza dos montes de Cambambe tardou séculos a ser entendida, mas foi reconhecida nos anos 50 do século passado, quando a garganta apertada por onde escorriam as águas do Cuanza foi escolhida para implantar uma barragem. Inaugurada em 1963, a barragem de Cambambe permitiu criar uma central que ainda hoje é vital para fornecer energia eléctrica à gigantesca Luanda. A instalação da barragem e da central hidroeléctrica renovou a importância desse cerro onde o Governador Manuel Cerveira Pereira tinha fixado um presídio, que evoluiu para uma ampla fortaleza amuralhada, abençoada por Nossa Senhora do Rosário, a quem foi dedicada a igreja local. Todo o cerro foi transformado numa fortaleza poderosa, onde se criou uma pequena cidade, meio condomínio, meio aquartelamento militar, para albergar quem trabalha na barragem e na central, bem como quem a defende. Mas, a velha fortaleza, por onde se entra passando sob um arco encimado pela coroa real portuguesa, é hoje uma memória arruinada do passado, esquecida num recanto. Os canhões de ferro que durante séculos mantiveram os intrusos à distancia estão dispersos pelo chão, meio engolidos pelo mato, tão abandonados como os blindados de combate — vulgo tanques de guerra — que ganham ferrugem e raízes, literalmente, pois crescem árvores por baixo de dois deles, a uns metros da muralha de pedra, ela própria tornada obsoleta por uma poderosa e ameaçadora vedação dupla de arame electrificado. Ali, só entra quem é convidado. Eu tive essa sorte!

Onde era suposto encontrar montes de prata a brilhar à luz do sol nunca ninguém viu mais do que montes verdejantes. A fortuna de Cambambe tardou em ser descoberta. Afinal, era a sua garganta do rio Cuanza, perfeita para uma barragem para produzir energia eléctrica. Ainda hoje é daí que segue a electricidade que abastece Luanda.

A entrada na velha fortaleza de Cambambe. A pedra com o escudo de Portugal e a coroa real continua polida e branca. Resistiu mais do que tudo o resto...

Um canhão abandonado no chão, rodeado por mato e, em baixo, um dos velhos carros de combate blindados que no passado recente foram usados para assegurar a protecção da barragem e das suas instalações.


Notável exemplar de arquitectura moderna do final dos anos 50. A Pousada de Cambambe, estrategicamente construída por cima da falésia, num dos locais onde se desfruta da melhor paisagem desde o cimo do monte. Corredores e salões continuam iguais ao dia da inauguração.

O jardim da Pousada de Cambambe, com árvores de grande sombra implantados nos canteiros de formato geométrico, admiravelmente bem cuidados.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009


Porque hoje é Dia Mundial da Fotografia
RETRATO DE QUINZE SORRISOS ANGOLANOS

[Texto e Fotos: Alexandre Correia]

Cada dia do ano é dia de qualquer coisa. Ao 19 de Agosto calha ser o Dia Mundial da Fotografia, celebrando internacionalmente uma das coisas que os últimos anos mais vulgarizaram e popularizaram, desde que a fotografia digital se banalizou. Longe vão os tempos em que as fotos eram a preto e branco, gravadas numa placa de vidro. Depois passou a ser uma película que, por sua vez, somente se coloriu nos idos anos 60 do século passado, embora tivesse, pelos custos, demorado cerca de duas décadas a conquistar o público. Hoje, já nem sequer é preciso ter uma câmara para registar fotografias; a generalidade dos telefones celulares já incorpora a função de máquina fotográfica e os modelos mais sofisticados conseguem até assegurar uma qualidade impressionante. E com a fotografia digital, não só chegaram as fotos instantâneas, que estão prontas a ser apreciadas assim que disparamos, como nasceram os fotógrafos instantâneos, que são capazes de tudo, nomeadamente de copiar as imagens que os encantaram e que, normalmente à custa de sucessivas tentativas, conseguem às vezes exibir belas fotografias, daquelas que fazem disparar a vaidade ao seu autor e a inveja aos que as contemplam. Mas, tal como não é o acto de escrever que faz de alguém um escritor, também não é por se tirar fotografias que nos tornamos fotógrafos. Até podemos viver disso, apresentando-nos, com toda a legitimidade, como "profissionais", mas é preciso recordar que a única diferença entre um profissional e um amador é, precisamente, que o primeiro faz dessa actividade o seu modo de vida, enquanto que o segundo a desempenha meramente por prazer. Há bons e maus profissionais em todas as áreas, como em muitas há igualmente amadores cheios de talento e competência, que davam excelentes profissionais se quisessem apostar nisso para viver. Na fotografia, o retrato de pessoas sempre foi uma das áreas importantes. Antigamente, ia-se ao fotógrafo registar um retrato que imortalizasse uma ocasião especial, como um aniversário ou um nascimento, mas já para um baptizado ou casamento era hábito contratar-se o fotógrafo. Agora, mesmo quando se contrata um fotógrafo, toda a gente fotografa por tudo e por nada. E toda a gente faz retratos a toda a gente. Sobretudo a gente que não conhece de lado nenhum. Nunca o fiz, mas senti bem nada pele o incómodo disso quando, em 1998, fui a estrela de uma sessão fotográfica de um grupo de turistas asiáticos, com quem me cruzei nos átrios do enorme Centro Cultural de Belém, a dois passos do meu escritório em Lisboa. Não os obriguei a apagar as fotografias, nem sequer me zanguei com eles. Mas tive uma oportunidade rara de sentir quanto invasivo é fotografarem-nos sem que o desejemos. Alguns fotógrafos dizem que assim conseguem obter retratos muito espontâneos e naturais; concordo que sim, mas isso não me me permite aceitar fazê-lo. Até porque a experiência diz-me que os retratos são muito mais autênticos e reveladores quando previamente acordados. As quinze imagens que aqui deixo, retratam várias gerações de mulheres angolanas, desde algumas que já há muito serão avós, pela certa, até outras que ainda só são as suas netas. Em comum, todas estas fotografias têm dois aspectos: foram feitas a pedido das próprias e captaram sorrisos. Uns mais rasgados, outros mais tímidos, mas todos eles genuínos. E há ainda outro ponto em comum, o olhar a descoberto, sem óculos escuros para esconder o que lhes vai na alma. Nem todos os olhares são alegres...













sexta-feira, 14 de agosto de 2009


Porque Há Pequenos Almoços Memoráveis
"MANTEIGA NÃO TEM!"

[Texto e Fotos: Alexandre Correia]

Quando se fala em pequeno-almoço, nem toda a gente pensa propriamente em café, mas se faltar o pão, a coisa muda de figura. Lembro-me de há uns anos, numa unidade hoteleira da vila de Waku-Kungo (antiga Santa Comba, sede do célebre Colonato da Cela) no interior de Angola, ao pequeno almoço, a gerente estar junto ao cesto do pão a controlar os hóspedes, avisando-os que só tinham direito a um pão. Claro que houve vários clientes que não fizeram caso disso e o resultado foi que outros ficaram-se pelo café e uma barrigada de fome. A gerente, que era uma daquelas matronas que eu não queria ter como sogra (valha-me Deus!...), descompôs alguns dos abusadores, mas depois revelou ser mulher de sentimentos, quando se dirigiu aos que tinham ficado a olhar para o cesto vazio e, ciente de que não era justo serem castigados pelos comilões, explicou que não havia mesmo mais pão, mas que podia arranjar "qualquer coisa" para comermos. Assim que a ouvi dizer isso, pensei logo que afinal não ia já entrar em dieta, mas nunca me passaria pela cabeça que nos ia propôr uns bifes de vaca logo ao pequeno-almoço! A verdade é que cairam mesmo bem, tão bem que ao almoço, no Bailundo, pude resistir a mais uma dose de Galinha de Cabidela, reservando o apetite para o jantar; até houve quem pensasse que eu já estava "por dentro" da surpresa dessa noite: um espectacular Boi assado no espeto, que nos foi servido no meio do mato, junto às Águas Quentes do Alto Hama — uma nascente de água verdadeiramente escaldante nas imediações do famoso cruzamento que distribuí o trânsito para o Huambo, para o Lubango, para o Lobito ou para Luanda.
Lembrei-me deste episódio quando, nesta recente viagem a acompanhar a quarta edição do Raid T.T. Kwanza Sul, nos voltou a ser proposto bifes para o pequeno-almoço. Isso aconteceu na vila de N'Zeto (antiga Ambrizete), duzentos e tal quilómetros a norte de Luanda, na costa, depois de uma noite em que nem todos puderam dizer que dormiram bem. Porém, desta vez, o que faltava mesmo era a manteiga, fundamental para barrar nos cacetes acabadinhos de sair do forno, na padaria muito sui generis que havia mesmo em frente, do outro lado da rua. "Manteiga não tem" — disse o patrão, acrescentando sem perder o fôlego a longa lista de coisas que tinha para rechear o pão: "Há uns bifes, tenho fígado, vamos já pôr na mesa uns fiambres (que, de facto, chegaram logo em bruto, para que cada um cortasse à facada autênticos "bifes" de fiambre...) e barras de queijo, estão a assar uns chouriços e umas morcelas, também posso arranjar doce, mas manteiga só há mesmo desta...", que era margarina. Contentei-me com o fiambre e o queijo, que casaram deliciosamente com os cacetes estaladiços, que ainda aqueciam as mãos quando os agarrávamos. Tão bem que me souberam estes cacetes que não resisti a atravessar a rua e fui à padaria. Já conhecia os cantos à casa, pois quatro dias antes tinha passado por lá precisamente quando estava a entrar no forno o pão da tarde, mas vinha de um almoço que me deixou suficientemente satisfeito para conseguir resistir ao apelo do pão quente, que liberta aquele odor único, como se fosse um chamariz. Então, entretive-me a conversar com o padeiro e a conhecer a sua casa e a sua família. Disse-lhe que também sabia fazer pão, mas que gostava mais de fazer bolos. Os filhos, quando me ouviram dizer isso, até arregalaram os olhos. Não foi preciso mais para ficarem conquistados e sentarem-se à minha volta, cheios de curiosidade em saber mais coisas: o meu nome, de onde vinha, como é a minha terra, etc. Mas ficaram mesmo encantados foi quando lhes disse que tinha também duas miúdas e acrescentei que a mais nova era um anjinho, para logo a seguir lhes mostrar uma fotografia da minha "Manena" (leia-se Madalena) vestida de anjo. Até o padeiro quis ver...


Depois de ter ficado mais de uma hora a levedar, a massa está pronta a entrar no forno e nada se desperdiça; com os restos, que já não chegavam para fazer um cacete normal, o padeiro fez duas pequenas bolas para os seus miúdos.

Um ritual que se repete duas vezes por dia: as primeiras fornadas saem ao nascer do dia, enquanto os galos ainda cantam para despertar a povoação. Depois, a meio da tarde volta-se a amassar e cozer pão para dar de comer às gentes de N'Zeto ao fim do dia. E quanto aparecem forasteiros, como nós, a alterar as contas da quantidade, a solução é reforçar a massa, para que ninguém fique sem o seu pão.

Enquanto uns tabuleiros cozem no forno, o pão acabado de sair arrefece ao ar. Não tardou muito a que os tabuleiros ficassem vazios...

Só faltava a manteiga, um luxo que a maioria dos clientes desta padaria nem sequer faz ideia do que seja. Nem no restaurante em frente, do outro lado da rua, havia manteiga para barrar no pão, mas o dono propôs-no de tudo para guarnecer os cacetes: fiambre, queijo, chouriço, bifes, frango e até fígado grelhado! Contentei-me com as duas primeiras opções e felizmente que levei comigo uma sanduíche de fiambre suplementar, pois foi o maior petisco que pude comer nos dois dias seguintes, à razão de uma discreta trincadela de volta e meia. Não imaginam como soube bem!...

Retrato de uma família numerosa, que é ainda maior. Não ficaram na fotografia nem o padeiro, que estava a tratar de mais uma fornada de pão, nem o filho mais velho, que o foi ajudar.

Rodeado pelos filhos do padeiro, alegres e saudavelmente brincalhões, contamos histórias uns aos outros e rimo-nos imenso. O mais velho demonstrou uma surpreendente habilidade para a fotografia, como o prova esta imagem; disse-me que um dia gostava de ser fotógrafo. Oxalá consiga!

quinta-feira, 6 de agosto de 2009


Ao Acordar na Encantadora Fazenda Cabuta
DELÍCIAS DE UMA BELA NEGRA


[Texto e Fotos: Alexandre Correia]


Em cima, o terreiro onde são espalhados os bagos de café para secarem ao sol, depois de colhidos. Em baixo, pormenor de um recanto do jardim junto à capela, num recanto isolado da fazenda.

O português é uma língua muito traiçoeira e nem sempre o que parece é. Neste caso, lamento desiludir quem imaginava que eu ia aqui contar uma história de alcova, daquelas que às vezes se contam ao ouvido do melhor amigo, que depois a repete ao melhor amigo dele e por aí adiante, até rapidamente voltar ao nosso ouvido, pela confindência de outro amigo. Não, não vou revelar nenhum desses segredos que se espalham à velocidade com que um fósforo arde, porque Bela Negra é apenas... o nome sugestivo para o café robusta produzido na Fazenda Cabuta, enorme propriedade agrícola que se estende por cerca de 10 mil hectares de colinas verdejantes, forradas de cafezais e palmares. A não mais de meia hora de condução da vila de Calulo, sede de um dos municípios da província angolana do Kwanza Sul, a Cabuta é hoje considerada uma fazenda modelo para o programa de relançamento da produção de café em Angola, que depois de ter atingido um pico de 3,5 milhões de sacas em 1973, desceu até umas míseras 15 mil sacas de 60 quilos em 2004. Antes de ser ultrapassado pelo petróleo, em 1972, o café era o líder das exportações angolanas e se é certo que o "ouro negro" continuará ainda por muitos e longos anos a manter esta posição, também não é menos verdade que as autoridades angolanas têm vindo a manifestar o maior interesse em reconquistar um lugar com relêvo no mercado do café, prevendo que no final de 2009 se atinjam já as 200 mil sacas, das quais cerca de 9 mil deverão ser provenientes da Cabuta.
Para um apreciador de café como eu, foi uma agradável surpresa descobrir esta fazenda, recentemente reconvertida numa unidade de agro-turismo com 45 quartos distribuídos por cinco pólos, desde a casa principal apalaçada a anexos construídos propositadamente para a actividade hoteleira, passando por edifícios adaptados, como algumas casas que no tempo colonial eram residências dos funcionários da administração da propriedade. Cheguei de noite e no meio da escuridão mal consegui imaginar que mais do que o café, bela é mesmo esta fazenda. Pela manhã, claro que não dispensei algumas chávenas de Bela Negra, forte e de sabor intenso, mas imperdível foi mesmo o passeio pelos caminhos da fazenda, rolando alguns quilómetros entre alamedas de palmeiras enormes, geometricamente alinhadas ao longo das bermas, fornecendo a necessária sombra para proteger o cafezal do sol. Curiosamente, talvez não tenha sido por acaso que o encarregado da fazenda veio do Brasil, ou o maior país lusófono não seja o líder mundial inconstestado na produção de café desde que há registos , já lá vão cerca de um século e meio!

A combinação das actividades agrícola e turística permitiu abrir ao público uma das mais belas fazendas de café da região do Libolo. E quem tiver um todo-o-terreno, pode partir dali à descoberta de caminhos que levam ao encontro de paisagens incríveis, como espreitar o Cuanza do alto de uma falésia, ou descer ao rio junto à Ponte Filomeno da Câmara, construída em 1932 e hoje meio perdida das rotas mais usuais.

Um dos velhos armazéns da fazenda, com enorme telhado em chapa e paredes abertas para o ar se renovar com facilidade. Embora a fazenda se encontre a uma altitude considerável, atingindo os mil metros nos pontos mais altos, ali também se sente quando o calor aperta.

Vendedora percorre o bairro dos trabalhadores da fazenda com um cabaz de peixe seco do rio Cuanza à cabeça. Ao final da manhã, o cabaz já está vazio e em muitas casas será esse o prato principal do almoço...



Os 10 mil hectares da Fazenda Cabuta são recortados por quilómetros e quilómetros de caminhos de terra, quase sempre enquadrados em alamedas de palmeiras, que não só asseguram a necessária sombra para proteger os cafezais, como permitem complementar a actividade agrícola com a produção de Dendém, o famoso óleo de palma, indispensável no tempero da cozinha africana e asiática.